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A favela é o futuro da cidade?

Alguns veem nela o “pior dos mundos possíveis”, outros, uma “oficina do futuro”, ou talvez um “potencial econômico durável”. Inflando sem parar, as favelas já abrigam grande parte da humanidade, e tudo indica que vão continuar a fazê-lo.

Texto original de Jonas Lum via Reporterre.net

Um bilhão. É este o número de pessoas que vivem nas quase 200.000 favelas existentes no planeta. Camponeses expulsos de suas terras, salariados demitidos, artesãos desempregados, vítimas da guerra ou da mudança climática – eles são cada vez mais numerosos a povoar as margens das metrópoles.


Agora que mais da metade da população mundial vive nas cidades, e que o êxodo rural parece durar para sempre, as favelas representam o único pouso daqueles à mercê do capitalismo. Mais da metade da urbanização se faz hoje por meio das favelas, sobretudo nas regiões mais pobres do mundo. Na Etiópia, no Chade, no Nepal ou no Afeganistão, a quase totalidade da população urbana vive em favelas, e essa tendência não se limita aos países ditos “em desenvolvimento”.


Nos Estados Unidos, em 2003, registravam-se já 13 milhões de habitantes em favelas. “Se a tendência persistir”, nota Gautam Chatterjee, expert em planificação, “as ‘cidades’ vão desaparecer e só restarão as favelas”.


Mas a que exatamente nos referimos como “favelas”? É difícil fazer muita comparação entre os 1,5 milhão de cairotas que vivem sobre as lajes de prédios aqueles que fazem das tumbas de um cemitério em Manila suas casas , as vilas de barracas dos náufragos econômicos nos Estados Unidos , a “selva de Calais” no norte da França , e algumas favelas turcas e indianas construídas de maneira tradicional por camponeses que ainda dominam as técnicas tradicionais de construção.


Os pontos que sublinham os autores de Challenge of Slums, 2003 (o Desafio das Favelas), um grupo de uma centena de pesquisadores que se debruçou sobre a questão, são a superpopulação, os alojamentos informais de qualidade precária, o acesso insuficiente à água potável e à higiene, e a insegurança quanto à manutenção da posse de seu domicílio.

Um sintoma do Neoliberalismo

Para Mike Davis, pesquisador independente e autor de um livro sobre a “favelização”, (Planet of Slums: Urban Involution and the Informal Working Class, 2006), a explosão das favelas é um sintoma do Neoliberalismo, uma consequência direta do abandono do Estado e da implementação dos SAPs (Planos de Ajuste Estrutural) – empréstimos do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial a países economicamente debilitados para supostamente sanar seus gastos sociais.


Para o autor, foi durante a década de 1980 que as favelas se tornaram “o futuro inescapável, não somente dos imigrantes rurais pobres, mas também de milhões de habitantes urbanos desalojados e mergulhados na miséria pela violência desses ‘ajustes’”. Ele lembra que o adensamento e criação das favelas se deve, às vezes, a guerras ou catástrofes ditas “naturais”, mas que, na maioria dos casos, são produto da luta de classes, de uma urbanização e de uma proletarização impostas pela lei de mercado.


Como aponta o pesquisador Jan Breman, a verdadeira crise do Capitalismo é a criação dessa classe trabalhadora informal de um bilhão de membros, forçados pela necessidade a aceitar qualquer tipo de trabalho. Eles passam, muitas vezes, por horas de deslocamento até seu local de trabalho, onde vão empurrar carroças ou prestar serviços domésticos. Testemunhamos um retorno assustador do trabalho infantil, e o tráfico de órgãos é moeda corrente nas favelas indianas. Passíveis de serem expulsos de um dia pro outro, as comunidades de squatters são extorquidas por políticos corruptos e pelo crime organizado.

Ao se destruir uma favela, cria-se uma outra, ainda pior

Incapaz de integrar esses indesejáveis que ele cria, o mundo capitalista tenta fazer com que sumam de vista. A expulsão das favelas tem sido há muito a política das autoridades. Contudo, todos os pesquisadores afirmam: ao se destruir uma favela, cria-se uma outra, ainda pior que a anterior. Os habitantes desalojados não vão simplesmente desaparecer, e devem encontrar com urgência outro lugar para se abrigar, muitas vezes em condições muito piores: alojamentos mais precários, menores, mais distantes do centro das cidades, mais perigosos e insalubres.


Às vezes, por “bondade”, cálculo eleitoral, ou para agradar as empreiteiras imobiliárias, os governos decidem relocar os moradores das favelas em “conjuntos habitacionais populares”. Na maioria dos casos, segundo Mike Davis, essas construções beneficiam somente os políticos e as classes médias. Quando não são as autoridades que estabelecem critérios e tarifas restritivas, que impedem os pobres de ter acesso aos alojamentos – ironicamente construídos justamente para eles – são os próprios moradores que se recusam a se mudar para lá porque, paradoxalmente, as suas condições de vida são ainda menos favoráveis nesses locais.


Instalados durante a noite

Não é raro os habitantes das favelas do mundo se rebelarem quando se lhes tentam desalojar porque, ao menos, ali têm condições mínimas de sobreviver. Nas favelas, os moradores transformam suas casas em pequeno comércio ou em oficina, e podem às vezes até mesmo criar alguns animais e cultivar um pedacinho de terra – coisa impensável nas grandes torres de concreto padronizadas, completamente inadequadas ao seu modo de vida e subsistência. É assim que as favelas de Istambul são chamadas Geçekondus, que significa “instalados durante a noite”, em função da combatividade dos moradores de uma delas que, durante 37 dias seguidos, reconstruíam durante a noite as suas casas que as autoridades destruíam durante o dia – até que finalmente o governo abandonasse o esforço.


“As populações pobres preferem sem dúvida suas favelas aos ‘complexos habitacionais’”, aponta Mike Davis. Quanto àqueles que aceitaram o relocamento, dizem ter ganho em conforto material, mas perdido em todos os outros aspectos: “Os moradores se queixam da perda de solidariedade e de senso de comunidade. Quando se lhes interroga, relatam um declínio espetacular das interações sociais, das relações entre vizinhos, além da frequência com que as crianças brincam entre si, bem como o crescimento da sensação de isolamento e da solidão entre os mais velhos”, completa.


Os arquitetos coloniais franceses em Argel

Diante do fracasso da repressão estatal, bem como do Estado do bem-estar social, foi o Banco Mundial quem se encarregou do “problema” das favelas ao viabilizar os terrenos, fornecendo empréstimos para a construção de alojamentos seguros e oferecendo títulos de propriedade aos moradores de ocupações. Aí também, o fracasso foi enorme. Muitos moradores passaram a alugar ou vender sua parcela tornada “legal” a pessoas ainda mais pobres que eles. Quanto às ONGs – financiadas, entre outros, pelo Banco Mundial – tiveram o efeito de desradicalizar os movimentos de contestação nascentes ao individualizar o trato dos problemas, sem atacar suas causas profundas.


Mas então, como tratar o “problema” das favelas? Se os esforços conjuntos de diferentes atores se mostram ineficazes, pode ser porque a questão está mal formulada. Talvez as favelas não sejam o problema, mas a consequência de um problema maior: um sistema injusto que produz e rejeita mecanicamente às suas margens um exército de despojados. Alguns, como o geógrafo John Turner – cujas ideias inspiraram o antigo diretor do Banco Mundial, Robert McNamara – louvam o gênio criativo das favelas, chegando a dizer que, longe de serem o problema, são a solução. Antes dele, os arquitetos coloniais franceses em Argel elogiavam já a “inventividade com que os espaços se adaptam às diferentes funções e às necessidades cambiantes dos usuários”. Algumas décadas depois, o príncipe Charles, em visita à Índia, declarava: “Temos muito a aprender sobre a maneira com que sistemas complexos podem se auto organizar em torno do capital comunitário para criar totalidades harmoniosas.”


Calar, ou normalizar, as desigualdades

Louvar as capacidades de auto-gestão e de adaptação dos moradores das favelas, sem denunciar as razões que os conduz a se apertar nesses barracos, implica em calar, ou normalizar, as desigualdades. Gita Verman, arquiteta e autora, estima que “não é em razão da pobreza urbana que as favelas existem, mas em razão da riqueza urbana.” Para ela, “substituir o rótulo ‘problema’ pelo rótulo ‘solução’ […] significa aceitar a injustiça que constitui o fato de um quarto a um quinto da população da cidade viver em menos de 5% da sua superfície.”


O diário liberal Les Échos, em um artigo recente , também elogia a resiliência e o caráter durável das favelas: “Vista do céu, a morfologia desses bairros demonstra lógicas funcionais, como a preservação das superfícies agrícolas para alimentar mercados próximos, a geometria das ruas facilitando a orientação nas vielas sem nome, e a otimização do espaço”. Sem dúvida as favelas são ecologicamente avançadas em alguns aspectos: muitas delas praticam a reciclagem e a agricultura urbana, por exemplo. Mas se os jornais dos ricos fazem questão de destacar a inventividade dos pobres, não é sem segundas-intenções. Um pouco mais adiante, o jornalista louva – sem risos – “o potencial econômico durável das favelas”. Ele cita o exemplo da Lafarge, empresa de concreto, que “demonstra sua organização logística para entregar em tricíclo uma encomenda de concreto com aditivos retardantes, transportados em baldes de 15 litros pelas ruas estreitas de Dharavi.” Uma oportunidade para a empresa, que também vê nesse mercado de mal-instalados um “enorme potencial”.


Após tentarem de tudo para erradicar, pacificar, e tirar de vista as favelas, as empreiteiras e os meios econômicos veem agora esse bilhão de squatters como um novo “diamante bruto”: um mercado a ser conquistado.

O empobrecimento generalizado é o nosso horizonte

Em seu livro L’Architecture de survie (Arquitetura da sobrevivência), o arquiteto Yona Friedman também faz um elogio das favelas. A diferença é que ele não as enxerga como um problema a ser sanado, nem como uma fonte de renda, mas como a “sociedade anarquista dos pobres”, bolsões que se desprenderam do mundo capitalista. Ele as apresenta como um exemplo – talvez idealizado – de uma outra organização social em “ruptura com a cidade burguesa”. A unidade de base seria a “vila-favela” bairro autogerido e autossuficiente no seio da favela, onde a vida não seria submetida à ditadura da economia.


Ele vê a “vila-favela” como uma “oficina do futuro”, em um mundo que caminha cada vez mais em direção à pobreza generalizada. Sob sua ótica, diante da exaustão programada dos nossos recursos, amanhã seremos todos pobres, incluindo os cidadãos ricos de hoje. E, diante das penúrias do futuro, Yona Friedman sustenta que as megalópoles, frágeis, totalmente dependentes do exterior e muito grandes para poder reagir ao choque de maneira eficaz, oferecem poucas chances de sobrevivência. Ele propõe que transformemos as cidades em “vilas urbanas”, autossuficientes e politicamente autônomas, capazes de se adaptar rapidamente às circunstâncias cambiantes, à imagem da “vila-favela”.


Mike Davis e Yona Friedman, apesar de suas abordagens diferentes, concordam em um ponto: o empobrecimento generalizado é o nosso horizonte. O primeiro estima que as massas se rebelarão antes que caiam em “isolamentos” comunitários. O segundo, que somente a penúria nos forçará a mudar nossos hábitos e nossa organização social.


A situação atual parece lhe dar razão. Nosso mundo se esfacela sob nossos pés, mas continuamos a agir como se ele durasse para sempre, como se seu colapso não nos dissesse respeito. Os ricos já se preparam para o momento: enquanto se barricadam em seus condomínios fechados para se proteger da miséria e da cólera que eles mesmos geram, seus exércitos recebem treinamento em táticas de guerra urbana. Parece que eles estão levando bem a sério a advertência do Banco Mundial, que previa, já nos anos 1990, que a pobreza urbana se tornaria “o problema mais importante e mais politicamente explosivo do próximo século




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