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Proteger a natureza expulsando os pobres?

Urbanista propõe uma saída sustentável e não-segregadora para áreas de mananciais ocupadas por moradias precárias. Implica enfrentar a especulação imobiliária — e integrar políticas de habitação social, saneamento e transporte

Quando ocorre um vazamento de óleo, a viscosidade do líquido faz com que ele se alastre e vá sufocando tudo que encontra pela frente, seja na água, seja na terra. E, na área contaminada pelo óleo, a vida se estabelece de forma precária.

Essa metáfora é ilustrativa e revela como a professora, arquiteta e urbanista Angélica Alvim compreende o crescimento desajustado de cidades brasileiras, o que chama de urbanização dispersa. “Os problemas da urbanização dispersa têm muito a ver com os problemas das cidades brasileiras, que crescem de forma espraiada, como se fosse uma mancha de óleo, sem planejamento”, reitera, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Para ela, mais do que projeto de urbanização, é preciso um ajuste de foco, numa visão mais sistêmica e integrativa com a realidade da falta de moradia, de moradias precárias e a necessidade de preservação ambiental. “Precisamos trabalhar de forma mais próxima das realidades, não é possível darmos as costas para a participação dessa população. Esta população está lá [em áreas de preservação], então como vamos trabalhar para ela morar melhor sem degradar o meio ambiente? Esse é o primeiro ponto”, tensiona.

Angélica observa que as pessoas ocupam áreas de preservação por pura falta de planejamento e política habitacional. “É preciso ter uma visão sistêmica sobre o problema, é preciso ofertar habitação em áreas consolidadas, habitação a preços acessíveis, onde há infraestrutura”, sugere. Ou seja, sem a oportunidade de ocupar espaços e áreas já urbanizadas, muitas pessoas são forçadas a avançar sobre locais de preservação ambiental.

A professora ainda aponta que, quase na mesma proporção em que as pessoas são empurradas para áreas periféricas e de preservação, há um esvaziamento populacional de áreas mais centrais. É o caso de centros de grandes cidades, como São Paulo e mesmo Porto Alegre, que pouco servem à moradia. “Não adianta proibir urbanização em áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas, próximas às represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas de interesse social nas regiões centrais”, aponta.

Entretanto, a professora diz que também é preciso pensar nas áreas já degradadas e que abrigam moradias extremamente precárias. Para ela, a solução não é simplesmente desocupar, retirar as pessoas dali.

“É preciso políticas públicas integradas, em que habitação, desenvolvimento urbano, saneamento e as políticas de transporte e mobilidade sejam feitas de forma integrada para que essas pessoas consigam estar ali sem degradar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, as pessoas que precisarem ser removidas não percam essas relações que têm com o local”, sugere. Para ela, isso passa até por urbanizar algumas dessas áreas já degradadas, “mas uma urbanização que articule infraestrutura de saneamento ambiental, como também dignidade da habitação e infraestrutura verde”.

Na entrevista, Angélica ainda reconhece o grande papel de movimentos de luta pela moradia, mas aponta que é necessário também trabalhar o pensamento sistêmico nesses grupos. “O processo dos movimentos de moradia é extremamente legítimo, eles precisam ser cada vez mais parte de um trabalho articulado entre estado e município, e a universidade tem um papel a cumprir, contribuindo com a capacitação desses movimentos”, analisa.

Um caminho, segundo ela, é qualificar esses movimentos com assistência e formação que trabalhem não só pela luta por uma casa digna, mas também pela preservação do meio ambiente nas cidades.

“Assessoria técnica é uma saída importante, porque ela não precisa apenas ser vista como assistência técnica em relação à habitação, mas pode contribuir para uma maior capacitação dos movimentos de moradia em relação ao problema habitacional entendido de forma mais ampla, em que a questão ambiental é parte desse conjunto”, completa.

Angélica Tanus Benatti Alvim é arquiteta e urbanista, graduada pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, mestra e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é diretora. Ainda é docente do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

Entre suas publicações mais recentes, destacamos “Envelhecimento ativo e saudável nos espaços públicos de áreas protegidas: o Parque Linear Cantinho do Céu em São Paulo” (Oculum Ensaios (PUCCAMP), v. 16, p. 128-145, 2019) e “Memórias e atualidade Espaços públicos da área central de Presidente Prudente” (Minha Cidade, v. 222.01, p. 1-3, 2019).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como analisa a gestão e manutenção de áreas ambientalmente protegidas na Região Metropolitana de São Paulo? E por que muitas dessas áreas acabam dando origem a assentamentos precários?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Em relação à gestão das áreas protegidas da Região Metropolitana de São Paulo, precisamos entender um pouco a complexidade do tema. A Região Metropolitana de São Paulo tem 39 municípios, e 39% desse território está em áreas de proteção dos mananciais, que é uma região protegida por lei desde meados dos anos 1970.

Essa é a grande área protegida da Região Metropolitana de São Paulo. Depois, temos algumas Unidades de Conservação e Áreas de Proteção Ambiental – APA, como, por exemplo, os parques estaduais e municipais, mas principalmente os estaduais, como o da Cantareira, do Guarapiranga, entre outros.

Mas são áreas que têm a gestão, em geral, do Estado através da Secretaria do Meio Ambiente. A Área de Proteção de Mananciais tem várias sub-bacias que são protegidas por lei, que hoje são de gestão do Estado, mas também com forte participação dos Comitês de Bacia, sobretudo do Comitê de Bacias do Alto Tietê e dos Subcomitês de Bacias.

Eu avaliaria a gestão dessas áreas como falha. Por mais que tenhamos legislações extremamente importantes e que definem um processo de gestão, inclusive na área de proteção de mananciais compartilhada, acredito que ainda há várias lacunas a serem vencidas. Estamos diante de um processo de urbanização que muitas vezes esbarra no processo de proteção dessas áreas, mas, ainda assim, encontra brechas para ocupar essas regiões, às vezes de forma bastante predatória.

Esses assentamentos precários têm a ver com o processo histórico de urbanização da Região Metropolitana de São Paulo. A Região Metropolitana paulista, durante muitas décadas, foi uma área que sempre atraiu muita população de todo o Brasil. Se olharmos os anos 1960 e 1970, por exemplo, com a forte industrialização que ocorreu na região e com a ausência de oportunidades em outras partes do país, veremos que a região metropolitana de São Paulo é a que teve o crescimento populacional em maior ritmo.

Esse processo de ocupação e urbanização intenso, principalmente a partir dos anos 1950 e 1960, com a forte urbanização de áreas frágeis ambientalmente, deu origem a uma precariedade nessa urbanização, dissociado de um processo de planejamento. Não é que não houvesse um Plano Diretor, principalmente no município de São Paulo, e legislações, como a Lei de Proteção de Mananciais, que vão buscar impedir essa urbanização, mas é muito difícil sua implementação.

Ou seja, não necessariamente a urbanização vai respeitar a legislação. Mas, se a legislação tem tanta importância assim, como atuar sobre esse território? Seria necessário não apenas ter legislações que visem coibir a urbanização de determinadas áreas – como são as leis que criam as nossas áreas de proteção ambiental –, mas legislações que deem a oportunidade de urbanizar as regiões que vão se esvaziando, como as áreas centrais, por exemplo. Não adianta proibir a urbanização em áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas, próximas às represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas de interesse social nas regiões centrais.

Nos anos 1970, por exemplo, houve a criação de áreas de habitação social em regiões distantes, como na Zona Leste de São Paulo, onde também há áreas frágeis ambientalmente. No ABC Paulista, por exemplo, temos toda a ocupação das indústrias no eixo Anchieta-Imigrantes, principalmente em São Bernardo, Santo André e Diadema. Não por acaso esses municípios são os mais afetados por áreas protegidas ambientalmente, por isso há um congelamento de diversos espaços; contudo, é lá que estão as oportunidades de emprego.

É um ritmo de urbanização tão intenso que a legislação e o processo de planejamento não dão conta e, ao mesmo tempo, não há políticas públicas de fato efetivas para fazer com que se tenha políticas habitacionais em locais mais centrais nesses municípios e em São Paulo, bem como políticas públicas que olhem para essa realidade de urbanização e busquem minimizar o problema, oferecendo moradia digna para essas pessoas em áreas protegidas ou próximas dessas áreas.

IHU On-Line – Como é possível resolver essa equação: necessidade de urbanização e manutenção das áreas de preservação?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Algumas têm urbanização e outras são ocupadas precariamente, precisando ainda de muito investimento do Estado. Agora, não podemos negar que essas pessoas estão lá, por isso é preciso fazer algo que concilie a urbanização de forma sustentável — esse é um grande desafio — com a preservação e a recuperação dessas áreas.

É preciso entender que o problema não é da população de baixa renda e das ocupações precárias, é uma situação muito complexa, porque é um conjunto de fatores que está associado a uma ausência de políticas públicas que por muitos anos não olharam de forma atenta para esses processos, especialmente os processos que se dão nas áreas consolidadas.

O que acontece com as áreas consolidadas? Existe hoje uma valorização exagerada e intensa dessas áreas, então só quem pode pagar pode morar nas áreas consolidadas. É muito difícil conseguir pagar moradia em áreas propícias à urbanização.

Houve muitos investimentos de infraestrutura, de empregos, de circulação e mobilidade nas áreas consolidadas, enquanto nas regiões frágeis, mais periféricas, onde há áreas de preservação ambiental, legislações proibiram a ocupação e a infraestrutura de saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, não havia controle e fiscalização dessa população que foi se instalando ali. Havia, inclusive, uma conivência do Estado; por muitos anos os municípios foram coniventes em razão dos votos e de questões políticas.

Esse é um modelo de urbanização que acaba afetando os recursos naturais, os quais foram, por muitos anos, entendidos como fontes inesgotáveis. E agora, como fazer diante da escassez de recursos hídricos? É preciso ter uma visão sistêmica sobre o problema, é preciso ofertar habitação em áreas consolidadas, habitação a preços acessíveis, onde há infraestrutura.

E onde não há é preciso urbanizar essas áreas, mas uma urbanização que articule infraestrutura de saneamento ambiental, como também dignidade da habitação e infraestrutura verde. Porque não é possível só urbanizar e não conscientizar essas pessoas do papel que elas têm em preservar e recuperar o meio ambiente — as áreas protegidas.

Remover, mas como?

Nas áreas protegidas em que não pode haver ocupação, é preciso remover as pessoas. Agora, remover como? Tem que levar as pessoas para morar nas proximidades, porque não podemos retirá-las das redes de solidariedade que já fizeram, das áreas em que sempre viveram.

Portanto, não dá para remover tudo. Como fazer isso de forma muito delicada e com um projeto sustentável? É preciso políticas públicas integradas, em que habitação, desenvolvimento urbano, saneamento e as políticas de transporte e mobilidade sejam feitas de forma integrada para que essas pessoas consigam estar ali sem degradar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, as pessoas que precisarem ser removidas não percam essas relações que têm com o local.

IHU On-Line – Em que medida essas lógicas de ocupação urbana da Região Metropolitana de São Paulo se replicam em outras cidades brasileiras?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Hoje em dia, os problemas da urbanização dispersa têm muito a ver com os problemas das cidades brasileiras, que crescem de forma espraiada, como se fosse uma mancha de óleo, sem planejamento. Esse é um modelo muito comum, lógico que em menor escala e com feitos menos perversos em várias cidades brasileiras.

Por exemplo, quando viajamos pelo interior paulista, ou mesmo no Rio Grande do Sul ou em áreas de Minas Gerais, observamos a ocupação de fundos de vales, áreas de encosta, ao longo das Áreas de Preservação Permanente – APPs, onde temos cursos d’água.

Vemos um modelo de urbanização não só de população de baixa renda, porque também há uma população de alta renda ocupando áreas impróprias à urbanização. Esse é um processo que ocorre de maneira geral nas cidades brasileiras em função de uma ausência de planejamento e de políticas públicas que, por muitos anos, desconsideraram a realidade das cidades, em que vários planos eram feitos para a cidade ideal, não para a cidade real.

Esse é um problema recorrente do processo de urbanização brasileiro pós anos 1960, quando se dá um processo histórico intenso de urbanização.

Mais recentemente, mesmo com o Estatuto da Cidade, a urbanização, principalmente a urbanização dispersa, ainda não foi fruto de uma revisão. E como fazer isso? É preciso ter um olhar atento a esse modelo. Se observarmos a própria política habitacional recente, como o Minha Casa Minha Vida, veremos que os empresários vão construir nas áreas mais distantes, porque os terrenos são mais baratos. Mas, quando se constrói um conjunto habitacional distante, se induz uma urbanização aliada a esse conjunto.

Portanto, também se leva infraestrutura e estrada, mas com isso acaba se induzindo a uma urbanização que vai junto com o conjunto habitacional e, muitas vezes, ela não é planejada. Isso acontece em menor escala em diversos municípios, mas é um problema real que deve ser fruto de um processo de planejamento mais integrado.

IHU On-Line – Esse é o aspecto mais importante para melhorar o planejamento urbano das cidades do país?

Angélica Tanus Benatti Alvim – É um ajuste de foco no planejamento urbano, mas imagino que precisamos trabalhar de forma mais próxima das realidades, não é possível darmos as costas para a participação dessa população. Esta população está lá [em áreas de preservação], então como vamos trabalhar para ela morar melhor sem degradar o meio ambiente? Esse é o primeiro ponto.

Por outro lado, é preciso pensar que existem muitas áreas centrais em que se dá um processo de esvaziamento intenso — isso acontece em várias cidades brasileiras. Por isso, é necessário pensar projetos de habitação de interesse social nessas áreas, que aparentemente são mais caras, mas têm menor investimento em infraestrutura porque já estão consolidadas. Então, não podemos desperdiçar essa infraestrutura.

O Estado precisa ter uma visão mais sistêmica sobre a cidade e olhar para ela como um todo. Ao mesmo tempo que é essencial urbanizar as regiões mais precárias, inclusive removendo a população em áreas de risco, é imprescindível investir nas áreas centrais.

No interior, hoje, há também uma proliferação de loteamentos de alto padrão nas áreas periféricas. Estes loteamentos também acabam sendo vilões desse processo, não só por degradar o meio ambiente — muitas vezes não degradam, mas privatizam as áreas protegidas. Vemos muitas áreas de matas, que poderiam ser parques e praças públicas, que acabam sendo privatizadas por grandes condomínios.

E, claro, há condomínios que também degradam, seja por não possuírem sistemas de tratamento de esgoto, seja de outras formas. Eu vi, no interior paulista, muitos problemas com a falta de tratamento de esgoto, que é algo recorrente em várias cidades brasileiras.

Existem vários estudos, como o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que tem um trabalho maravilhoso sobre planos ambientais para as cidades brasileiras. Então, é necessário ter planos urbanos ambientais nas cidades brasileiras porque é preciso compreender que tem muita gente morando em áreas de risco, suscetíveis a enchentes, deslizamentos etc.

IHU On-Line – Como podemos relacionar desastres e catástrofes com a ocupação de forma precária de áreas de preservação nas grandes cidades? Como avalia as políticas públicas que vem sendo empregadas para evitar grandes tragédias?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Nas áreas onde o relevo é mais acidentado isso é mais crítico ainda. Vários municípios brasileiros estão assentados em áreas muito acidentadas e necessitam desse sistema de planejamento mais integrado; inclusive a própria segurança pública, com sistemas de alerta, com a defesa civil, deve ser parte desse processo de planejamento.

O risco, muitas vezes, é um risco em cadeia, porque a população de baixa renda que está morando ali sofre no primeiro momento, mas não é só ela, é toda uma cidade.

Eu diria que esse processo de urbanização brasileiro que ocorreu ao longo dos últimos 50 anos foi perverso em relação às áreas de proteção, não só sob o ponto de vista de ocupação das áreas mais precárias, mas também, de um modo geral, da própria urbanização.

Para buscarmos soluções hoje não é fácil, porque trata-se de um problema complexo, não dá para sair removendo todas as pessoas. Tem que se fazer trabalhos, encarar esse problema não só com planejamento urbano, mas com projetos localizados em que a população seja parte desse processo. IHU On-Line – Experiências de cidades colombianas como Bogotá e Medellín têm sido estudadas como forma de repensar as grandes cidades. No que essas cidades podem inspirar na busca pela solução dos problemas brasileiros? Angélica Tanus Benatti Alvim – Nas cidades colombianas, eles têm um problema muito sério em relação a áreas ambientalmente protegidas ocupadas pela população de baixa renda. Mas lá foi feito um projeto muito importante que teve respaldo em um planejamento nacional de habitação.

E esse planejamento também teve um trabalho muito forte com as municipalidades em Medellín e Bogotá. É um plano de urbanização das áreas precárias, em que foi feito um trabalho de conscientização dessa população, além de projetos de urbanização e redes de água e esgoto.

Assim, conseguiram fazer um trabalho integrado com a população, levando, inclusive, mobilidade e educação. Em Medellín temos o projeto das bibliotecas parques [Parques Biblioteca foram construídos para promover práticas educativas, culturais e sociais de seus bairros circundantes], que também teve em Bogotá, junto com o projeto de acessibilidade, como, por exemplo, os Metrocables — aqui chamamos de teleférico.

Juntamente com isso eles fizeram um trabalho de melhoria da autoestima da população, o que levou também a uma melhoria em relação à questão do tráfico de drogas, que era muito pesado nessas regiões.

IHU On-Line – No Brasil, existem experiências interessantes de preservação de espaços e melhora nas condições de habitação de populações mais pobres?

Angélica Tanus Benatti Alvim – A realidade que conheço é muito de São Paulo, mas existem algumas experiências, como em Curitiba, na região de Pinhais. Em São Paulo, temos o programa Guarapiranga, feito nos anos 1990, e o programa Mananciais, que é uma retomada do programa Guarapiranga, mas que extrapola até a área da Represa Billings.

É um programa do Governo do Estado em parceria com as prefeituras da região da Guarapiranga e com as prefeituras da região da Billings. Como o problema é muito complexo em São Paulo, eles acabam não tendo tanta visibilidade em termos de melhoria da qualidade de vida das pessoas, mas foram programas, principalmente o Guarapiranga, que tiveram efeitos importantes na qualidade da água.

De qualquer forma, na região da Billings, temos alguns efeitos interessantes, mas que são bem pontuais, por exemplo: o projeto do Cantinho do Céu, que foi a recuperação de um trecho muito pequeno da Represa Billings — dois quilômetros. Foi um projeto piloto, mas que acabou não tendo continuidade e hoje se tem a proposta de manutenção desse projeto.

Outro exemplo que está em fase de implementação fica na área de São Bernardo do Campo, no Jardim Alvarenga, também no Jardim Cocaia, onde a prefeitura da cidade fez uma política integrada; esse é um exemplo válido de política habitacional, urbana e ambiental.

Há também um projeto, que não chega a pegar muito a população de baixa renda, mas que recupera o meio ambiente e a orla, que é o Parque Piracicaba, ao longo do Rio Piracicaba, e que promove uma recuperação ambiental e de urbanidade da área da cidade de Piracicaba. Aos poucos esses projetos de conscientização têm sido feitos. Em Belém do Pará, o Parque Mangal das Garças é outro exemplo relevante.

IHU On-Line – São projetos que possuem na gênese essa perspectiva mais integrada?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Mais integrada e que tenta buscar a reconciliação dos parques e das áreas de preservação e a melhoria da qualidade de vida das populações que moram no entorno. Mas estes projetos não são simples, são projetos que exigem essa visão integrada, que muitas vezes extrapola a esfera municipal.

Por isso, a maioria desses projetos que estou citando como exemplo tem que ter uma articulação entre o município e o Governo do Estado e, na maioria das vezes, precisa de recursos do Governo Federal. São pequenos exemplos e iniciativas que dependem de continuidade, que não são feitas em um governo só, portanto é preciso ter consciência de que a articulação em diversas instâncias é fundamental e entender esses projetos como parte de um processo que extrapola os diversos governos.

IHU On-Line – Como analisa as lutas dos movimentos sociais de moradia atualmente? De que forma podem inserir em seus pleitos, além da busca por moradia digna, a preservação ambiental de espaços públicos?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Estamos em um momento em que, de uns anos para cá, os movimentos de moradia cresceram. A partir da Constituição Federal tivemos um processo de ampliação desses movimentos, por diversos motivos, pois há mais instrumentos para legitimar esses processos.

Então, os movimentos de moradia hoje têm uma força maior. Por outro lado, falta também, dentro dos movimentos de moradia, uma conscientização maior sobre o problema ambiental, porque muitas vezes eles — de forma legítima — focam somente na busca pela moradia.

Com isso, ocorre uma certa segmentação: “eu olho para o problema da moradia e não consigo entender que essas moradias precisam ser compreendidas dentro de um sistema mais amplo, que é o problema ambiental que está naquela área”. Contudo, faz parte de um processo de conscientização que está em construção, e esta construção está sendo feita.

De qualquer forma, o processo dos movimentos de moradia é extremamente legítimo, eles precisam ser cada vez mais parte de um trabalho articulado entre estado e município, e a universidade tem um papel a cumprir, contribuindo com a capacitação desses movimentos. Além disso, assessoria técnica é uma saída importante — temos a lei de assistência técnica de 2008 —, porque ela não precisa apenas ser vista como assistência técnica em relação à habitação, mas pode contribuir para uma maior capacitação dos movimentos de moradia em relação ao problema habitacional entendido de forma mais ampla, em que a questão ambiental é parte desse conjunto.

Por exemplo, devemos trabalhar com infraestruturas verdes em conjunto com essa população. É trabalhar pequenas ações, como a ação da reciclagem e outras que fazem parte desse conjunto de iniciativas que são locais. Então, os arquitetos e urbanistas têm um papel a cumprir junto com o próprio Estado.

IHU On-Line – Qual a função dos parques urbanos nas grandes cidades? Em que medida esses espaços relacionam preservação ambiental e melhor qualidade de vida para a população?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Os parques urbanos são extremamente importantes, não só para a preservação ambiental da fauna, da flora e dos cursos d’água, mas também para a urbanidade das pessoas e da cidade.

É no parque urbano que podemos ter atividades de lazer e ligadas à saúde e à própria saúde física, como, por exemplo, no caso dos idosos, que hoje precisam de áreas onde tenham práticas de lazer para grupos da terceira idade. Na cidade contemporânea o parque tem função essencial para a qualidade de vida, para a saúde e para a ampliação da longevidade das pessoas.

Por outro lado, eles também têm uma função ecossistêmica importante para a preservação dos recursos naturais. Por exemplo, a água é um bem valiosíssimo hoje, então ter estes cursos d’água protegidos por áreas de preservação ambiental e parques é fundamental para garantirmos a disponibilidade do recurso para a população em geral. Não é só para quem mora no entorno, mas é toda uma região que depende daquele recurso.

As áreas verdes são fundamentais para a preservação ecossistêmica da cidade, por isso, pensar cidades que incluem em seus planos diretores sistemas de parques urbanos é bem-vindo.

Quando falamos da urbanidade, falamos também de um parque que concentra atividades físicas e culturais, como orquestras — ir no final de semana ver a orquestra tocar no parque fará bem a todo mundo. Isso também é ponto de recursos, porque o turismo aumenta quando se tem parques urbanos, pois gera mais atratividade para aquela cidade. Com isso, todo mundo ganha.

IHU On-Line – Mas, para isso tudo, é importante pensar esses espaços como públicos. Correto?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Sim. Eu já parto do pressuposto que o parque é um espaço público, e o espaço público é lugar do encontro e da diversidade, porque é ali que podemos encontrar todos e todas, independente de raça, de gênero. É o lugar da diversidade, é o lugar da civilidade.

IHU On-Line – A privatização dos espaços públicos é uma discussão séria e, por exemplo, está em pauta no Rio Grande do Sul, como na questão da privatização do Parque Zoológico de Sapucaia do Sul, além de outros parques municipais em Porto Alegre, como o Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, conhecido como Harmonia. Gostaria que senhora detalhasse mais essa perspectiva de que o parque tem que ser público.

Angélica Tanus Benatti Alvim – Ainda não consegui formular bem o problema da privatização dos parques. Mas é um problema, porque o parque é público, esses bens são públicos. Será que o fato de eles serem privatizados para a gestão, tira o caráter público? Essa é uma questão para discutirmos. Acredito que não tire, mas, ao mesmo tempo, quanto a iniciativa privada vai ganhar com isso? Será que ainda não é função do Estado? Na minha opinião sim, porque não é possível retirar do Estado a responsabilidade de gerir os espaços públicos com qualidade.

Agora, como conciliar a ausência de recursos à manutenção desses espaços públicos com qualidade? É preciso entender melhor o que significa privatização, mas, ao mesmo tempo, é necessário garantir que essa privatização não vai tirar o caráter público e o caráter civilizatório de lugar de diversidade desses parques.

IHU On-Line — Vejamos com mais vagar o exemplo do Parque da Harmonia em Porto Alegre. Lá acontece, no mês de setembro, o Acampamento Farroupilha. É um dos parques que se cogita entregar à iniciativa privada. A iniciativa privada faria uma série de melhorias naquela área, mas colocaria empreendimentos pagos como restaurantes e museus. Embora se preserve áreas públicas e gratuitas, esse tipo de empreendimento altera a configuração e propósito do parque? Angélica Tanus Benatti Alvim – Isso não pode acontecer. Os parques urbanos em áreas centrais acabam contribuindo para valorizar o entorno, o que é um problema. Quando falo que defendo um planejamento mais integrado e sistêmico, é nesse sentido: como fazer com que a população de baixa renda também tenha acesso a morar no entorno dessas áreas mais valorizadas? Só a implantação de residências de interesse social garante isso? Não, precisamos de políticas públicas mais incisivas.

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