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Na ONU, água tem destaque em conferência ignorada no Brasil

O grande desafio para os movimentos globais é fortalecer ações pautadas pela necessidade de avançar para promover uma nova cultura da água




Neste março de 2023, em Nova Iorque, a ONU (Organização das Nações Unidas) realizou a Conferência da Água, cuja primeira e única edição havia ocorrido no longínquo 1977. Desde então, houve avanços positivos na agenda internacional sobre a água, inserindo-a com metas específicas no conjunto dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS 6), bem como foi declarado como direito humano essencial o acesso à água limpa e segura e ao saneamento, por meio da Resolução 64/292 da Assembleia Geral, de 2010.


A Conferência teve por objetivo oficial a revisão de meio-termo da execução dos objetivos da “Década Internacional para o Desenvolvimento Sustentável da Água”, avaliando-se desafios e oportunidades, assim como o apoio a ações que possibilitem assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos até 2030.


Para o evento, mobilizaram-se representantes de governos nacionais, agências da Nações Unidas, ONGs, órgãos internacionais, entidades de sociedade civil, comunidade científica, empresas privadas, instituições filantrópicas, povos originários e tradicionais, entre outros atores. Entidades credenciadas promoveram centenas de eventos paralelos à programação oficial de 22 a 24 de março.


Apesar dessa intensa mobilização mundial em torno de um tema que trata da água, bem essencial para a vida, de modo geral a mídia brasileira ignorou esse evento.


Na abertura da Conferência foi divulgado o Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento da Água, produzido pelo Programa Mundial de Avaliação da Água da Unesco em nome da UN-Water, um agrupamento de mais de 30 agências das Nações Unidas 1. Sob o tema Parceria e Cooperação, o documento alerta para o risco iminente de uma crise global de escassez da água, devido ao consumo excessivo e às mudanças climáticas. Atualmente, entre 2 bilhões e 3 bilhões de pessoas já sofrem com a falta de água por pelo menos um mês do ano. As estimativas apontam o aumento do contingente afetado pela escassez de água dos atuais 933 milhões para 1,7 a 2,4 bilhões de pessoas em 2050. O documento adverte sobre o “caminho perigoso” que as sociedades estão seguindo, “de excesso de consumo e desenvolvimento vampírico”.


Na abertura da Conferência foi divulgado o Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento da Água, produzido pelo Programa Mundial de Avaliação da Água da Unesco em nome da UN-Water, um agrupamento de mais de 30 agências das Nações Unidas


O Brasil, embora o governo tenha se organizado tardiamente para participação no evento, procurou retomar maior protagonismo no cenário internacional, debatendo os compromissos voluntários dos países para o uso sustentável da água. O pronunciamento de João Paulo Capobianco, secretário-executivo do MMA e chefe da delegação brasileira, reafirmou que a garantia do acesso universal à água e ao saneamento está conectada às prioridades do atual governo de “combater a pobreza e a desigualdade em todas as suas formas.” Defendeu ampla participação social e equilíbrio entre os usos múltiplos da água, e a garantia do acesso à água para populações mais vulneráveis, povos indígenas e comunidades rurais.


Na comitiva do governo brasileiro formada por representantes de ministérios, do Congresso Nacional e de alguns estados e municípios, destacou-se a expressiva delegação da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) com 11 integrantes. Em descompasso com os pronunciamentos do chefe da delegação, no entanto, observou-se que a Agência se alinhou com uma agenda neoliberal na Conferência, tendo privilegiado a interlocução com agentes privados e entidades nacionais que lhe dão guarida, a exemplo do Instituto Trata Brasil, e de seus símiles internacionais. A rigor, observou-se um governo brasileiro com duas caras no evento: aquela que procura materializar as promessas de campanha do governo Lula e aquela ainda refém da lógica ultraliberal do governo anterior, responsável pela alteração do marco do saneamento em 2020.


Dentre os 200 eventos paralelos realizados, muitos foram patrocinados ou contaram com a participação de entidades brasileiras da sociedade civil credenciadas para a Conferência. Destacamos dois desses eventos. O primeiro discutiu a participação cidadã e comunitária para garantir direitos à água e ao saneamento por meio de Parceria público-público e público-popular, reunindo práticas exitosas dessas parcerias na Colômbia, na Suíça, na Catalunha, Espanha, e em Paris. Já o segundo apresentou os riscos para os direitos humanos com a privatização dos serviços de água e saneamento, contando com debatedores do Brasil, da Espanha, da Indonésia, do Senegal e do Reino Unido, com destaque para o movimento em favor da reestatização dos serviços na Inglaterra e no País de Gales 2.


A Conferência também foi espaço para a divulgação de relevantes manifestos. Os 19 relatores especiais da ONU, que atuam sobre diversos aspectos dos direitos humanos, defenderam que a água deve ser gerida como um bem comum e não como uma mercadoria, e que os países garantam aos defensores dos direitos humanos e da água um papel de destaque nas discussões sobre a água.


Mais de 600 mil pessoas e 500 organizações em todo o mundo assinaram oManifesto pela Justiça da Água”, lido na plenária da Conferência. O texto pede a todas as nações que priorizem água para a vida e não água para o lucro. Em contraste com a perspectiva de comoditização desse bem comum essencial, propõe um plano de ação com foco em investimentos diretos para alternativas de abastecimento de água pública e comunitária e para proteger os ecossistemas hídricos, denunciando que a gestão privada da água se opõe à realização dos direitos humanos.


Entretanto, não foram apenas as manifestações progressistas que tiveram lugar no evento. Um documento muito influente – talvez o mais dentre todos – denomina-se “Virando a maré: uma chamada para a ação coletiva” e tem autoria da Comissão Global para a Economia da Água. Esse documento traz novas formas de abordar a problemática da água, usando conceitos e linguagem inovadores e pretensamente se apoia em evidências científicas para enquadrar sua “chamada à ação”. Contudo, muitos vêm analisando que se trata do antigo e desgastado receituário neoliberal, travestido em uma narrativa mais moderna, para promover as parcerias público-privadas, defender aumento dos preços para o uso da água e colocar em segundo plano a importância dos territórios ao valorizar um denominado “bem comum global”. Este é justamente o perigo do documento: com base em formulações bem elaboradas, falsamente apoiando o plano de ação em evidências científicas e endossado por especialistas respeitados no cenário global, legitimar políticas que, ao fim e ao cabo, promovam mais exclusão e discriminação.


Um aspecto positivo esteve na representatividade de debates sobre direitos de gênero e povos originários, além da expressiva presença de jovens. A ONU entende que os 711 compromissos governamentais e empresariais voluntários são potenciais alavancas para a transformação das políticas da água. Entretanto, os resultados da Conferência são vagos, fluidos e não-vinculantes, deixando espaço aberto para que os seus desdobramentos sejam apropriados pelos que detém mais poder, como as grandes corporações industriais e as multinacionais da água.


O grande desafio para os movimentos globais é fortalecer ações pautadas pela necessidade de avançar para promover uma nova cultura da água. Embora alguns resultados sinalizem mudanças, que possibilitem ampliar respostas à crise global da água, principalmente unir as agendas de água e clima, o problema principal é retomar o debate da água como bem comum, passando da teoria à prática.


Sob essa perspectiva final, os resultados para a população brasileira poderão ser favoráveis ou antagônicos. Se de um lado observamos uma importante mudança na posição do governo brasileiro, fortalecendo uma agenda de redução de desigualdade no acesso, tantas vezes postergada, o aspecto preocupante é reverter a visão prevalecente na ANA quanto à privatização que potencialmente infringe direitos humanos à água e ao saneamento. Trata-se, neste caso, de uma reprodução da resistência às políticas de inclusão social e acessibilidade de direitos que ainda resta encastelada em parcelas da burocracia federal.


Pedro Roberto Jacobi é professor titular sênior do Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental e membro da Divisão Científica de Gestão, Ciência e Tecnologia Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP e coordenador do GovAmb/IEE (Grupo de Acompanhamento e Estudos de Governança Ambiental).Editor da revista Ambiente e Sociedade. Coordenador do Eixo Cidades no ProETUSP – Programa de Eixos Temáticos da USP.

Amauri Pollachi é mestre em planejamento e gestão do território pela UFABC e conselheiro do Ondas - Observatório dos Direitos à Água e Saneamento.

Leo Heller é pesquisador da Fiocruz-Minas e coordenador para cooperação internacional do Ondas- Observatório dos Direitos à Água e Saneamento.

Os artigos publicados na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.


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